Aos cuidados de Geraldo Charles Guimarães,

Você ama os domingos. 

Ao longo do curso do rio, começo a perceber marcas psicológicas, que talvez só eu consiga ver, mesmo com pouca clareza; para mim, os domingos são os piores dias. Não só porque eles são repletos da ansiedade acerca da semana que chega, dos compromissos, dos resultados negativos da procrastinação do final de semana ou até mesmo ressaca, mas também porque os domingos para ateus, como eu, são sempre solitários. Façamos um passeio histórico: no domingo, Deus descansou, portanto à Ele dedicamos a honraria de almoçar com familiares e assistir programas pobres de conteúdo na TV. Eu tampouco assisto televisão. 
Aos poucos acredito que o meu nascimento foi um ato no acaso do espaço e isso me traz uma proximidade à minha história muito maior do que teria sido se você, pai, e minha mãe tivessem se apaixonado perdidamente no ensino médio e só tivessem feito sexo depois do casamento. Ter sido obra do acaso me dá a liberdade de ser o que eu quiser e, por isso, te agradeço. Falando em acasos, eu nasci dia 19 de abril que além de dia do índio, é dia do Exército Brasileiro. No Exército Brasileiro fui treinada para ser a revolucionária mais disciplinada que eu conheço, considerando também que o dia 19/04 também marca a batalha dos Guararapes, onde hipoteticamente teria ocorrido uma união das três maiores raças formadores do Brasil: negros, brancos e índios. Saber tão pouco da nossa genealogia também abre espaço para que essas marcas psicológicas formem um pouco do nosso caráter. 
Termos ficado separados durante o intervalo dos meus sete aos quinze anos permitiu que sua referência como pai permanecesse quase que canônica no meu imaginário, o que explica minha repulsa inicial em retomar nossos laços; ainda hoje me vejo muito pouco dependente de figuras masculinas, o que talvez seja uma grande mentira que eu conte para eu mesma todos os dias, já que você, Rafael e Pedro são meus meninos. Lembro-me que um dia você me enviou uma carta pedindo que eu te contasse o que havia acontecido de importante na minha vida enquanto você esteve fora e hoje devo dizer que eu não lembro muito bem. Minhas memórias são turvas e infelizmente cheias de dor. Não mantive diários e tenho pouquíssimas fotos desse período, é como se até nada tivesse acontecido. Mas curiosamente eu li quase todos os trabalhos de Kafka durante a adolescência, o que talvez tenha contribuído para a eminente melancolia. E eu escrevia muitas poesias, à mão, um dia você pode ler, se quiser. 
Sua existência é uma metáfora do meu estado de espírito e isso me faz sentir extremamente confortável. Sua vida foi marcada pela existência de mulheres fortes, amores notoriamente passageiros - mas não menos belos - e cerveja gelada. O silêncio que se estabelece entre nós é de uma tácita compreensão, um entendimento que não pode ser exprimido em palavras. Nossa busca por respostas cósmicas é deprimente, mas muito divertida. 
Penso que o mais importante sobre vocês, meus pais, seja a confiança que vocês depositam em mim, por acreditarem que em algum momento eu vou chegar "lá", mesmo que esse "lá" seja um conceito que nós não saibamos como definir. Com vocês, me sinto o acaso mais importante do mundo. E talvez eu até seja mesmo. Vocês fazem com que eu me sinta um infinito particular. 
Costumo achar aniversários muito poéticos, como se fossem o marco de uma contagem regressiva. Eles nos apressam a concluir objetivos, nos fazem refletir sobre quando tínhamos mais tempo. Mas vejo que em você, esses objetivos tem uma fluidez invejável: nada é tão urgente que não possa esperar mais um pouquinho. Gostaria de ter herdado essa não-ansiedade.  
Quando eu me sinto perdida, eu me vejo disposta a encontrar respostas em você, pai. E mesmo de forma indireta, nosso DNA compartilhado, nossos karmas cruzados e a sua certeza que em outras vidas também estivemos juntos, me enche de um sentimento que ainda não consegui catalogar. 
Feliz aniversário! 
(Espero que você não reaja à esse texto na minha frente, porque ainda não aprendi a demonstrar sentimentos direito).  

Da sua filhota, 

Amanda Ramalho Guimarães. 

Comentários

Postagens mais visitadas