Ele *
Escrevo agora como que por pedido, como eu mesma, pedindo músicas num pub inglês, através de um guardanapo e de uma marca vermelha de batom. E você se aproximou, na meia-luz do ambiente, cantarolando um trecho da música que ouvíamos, mas bem que poderia ser qualquer outra que eu não iria saber. Já estava meio tonta, meio morta mesmo. Então você se senta, meio trêmulo, cabelo negro todo bagunçado, jaqueta de bolsos furados, querendo encher meu copo. E eu digo que não, sem convicção nenhuma, embebida no mar dos seus olhos azuis. Pela minha cabeça naquele momento passavam flashes do nosso futuro, do fim da nossa juventude. Porque você era assim, um tanto quanto despreocupado, cursava Direito, amava Platão e me matava quando tinha de recitar Descartes em latim antes de dormir. Gostava de bossa-nova, mas preferia samba, por ser menos melancólico. Bebia só uísque e vinho, e me dizia que qualquer variante disso não é boa bebida, até água. Me ensinava a ver filmes, até o dia em que fizemos o nosso. Esmagávamos folhas secas no outono, depois nos deitávamos fartos na grama amarela, compreendendo o silêncio que o outro entoava. Porque você é assim. Andava só de cuecas pela casa e me olhava com olhos de julgo quando eu calçava meias no inverno, me acusando de burguesa. Só eu sei o quanto você amava meus olhos, minha pele, meu jeito de acordar pelas manhãs, minhas maneiras de te amar. E quando por fim nos casamos, já éramos casados. E quando por fim encheu meu copo, encheu minh'alma de doce, o doce que me falta, a esperança que me vaga. Me encheu de verde, no meio de flerte, num bar bem longe de casa. Me encheu de beijos, ao me ver descobrir que os furos da sua jaqueta eram propositais. E me amou por muitos anos, até eu não poder mais olhar nos seus olhos azuis. Saí correndo do bar.
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