77 anos de solidão
Era uma vez uma
mulher. Me contaram que, quando jovem, essa mulher era dona de uma beleza muito
próxima à minha. Das gerações miscigenadas, ela era o segundo fruto; negra, os
olhos verdes-mistério, os cabelos cacheados sempre curtos, como os dos homens.
A essa mulher, encantavam os bibelôs, os objetos inúteis de decoração e
pequenezas de todo o gênero. Havia muitos irmãos, que, ao longo da vida,
foram-se espalhando pelo Brasil. Se você bem sabe, não era costume de as
famílias pobres ficarem juntas por muito tempo e, aqui nessa cidade, ela fincou
seus pés.
Ela tivera muitos
amantes. E eu só sei disso pelo lastro deixado de cinco filhos, cada um fruto
de parte desses amores. Nada nunca nos foi contado, a história é de pura fantasia
e negação. Dizem que o primeiro amante era o mais belo. Dizem até que era
jogador de futebol. Dizem que tinha problema com drogas. Aos sessenta e poucos
anos, o filho desse encontro, mora pelas ruas de Belo Horizonte, com uma ferida
asquerosa aberta na perna, vivendo da pederastia e do crack. O azul plácido dos
seus olhos desvela uma criança que nunca criançou. Eu o chamo apenas de “tio”.
Ele nem sequer sabe o meu nome. Mas chama meu irmão do meio fervorosamente. É
curioso.
O segundo amante é
de quem menos sei. Só sei do fruto. Aos cinquenta e poucos anos, a beata da
igreja vaga serena pelos bairros da capital. Quando eu era criança, os natais
em sua casa eram sempre brilhantes, comidas de todos os tipos e risos altos.
Recentemente lá estive e a poeira era um estado de espírito – a velhice a
arrastou para um limbo de doenças intermináveis e alergia à animais.
O terceiro, dizem,
foi o maior amor de todos. E a mulher, manicure à época, se apaixonou pelo
patrão casado. Já com a barriga a crescer, ela se despede do emprego e do pai
da criança. Cresce então, uma amargura intensa, transformada em completa
devoção ao filho. Uma devoção doentia, corrosiva. Este era, de fato, seu único
filho. E os que vieram após ele, podem lhe confirmar...
O quarto fruto – e
desculpe, acerca do pai, nada sei – tivera problemas com a polícia e uma
urgência em transgredir as regras. Vivia estropiado e fora enviado ao Rio de
Janeiro bem novo, para morar com uma parente que, segundo às más línguas, se
dedicava à mandinga. Graças a ele eu possuo o parente mais esteticamente próximo à minha, uma prima mais nova. Existe uma distância tácita entre nós, como se habitássemos o mesmo mundo apenas por acaso, como se nosso encontro tivesse sido numa mesa de bar e, por acaso, nosso sangue fosse o mesmo.
O quinto - e último, dele só sabemos que tinha olhos azuis bem vivos e elétricos. É o meu avó. Dele, não sei nem o nome. O sobrenome da minha mãe, são os dois nomes da vó e assim, selamos à fogo uma trama de mistérios. E deste último amor, só sei que veio uma criança, tão parecida à mim. Uma criança criada pela avó, que falecera nos 14 anos da menina.
É curioso, porque essa menina hoje talvez seja eu.
Já era hora de eu me acostumar à ser fruto de mistérios em cadeia, já é hora de findar uma incessante busca por respostas. É hora de deixar que o mistério repouse junto do coração da minha avó, que guardou consigo tantos segredos, que lhe causaram inchaço no coração. Que é parte da nossa versão de 'Cem Anos de Solidão'.
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