Parte II: A Estrada de Pedrinhas
Hoje, sentada na minha mesa no escritório, eu fiz as contas de final de ano. E lembrei que ano passado, eu disse que passaria esse ano novo na praia. Esse ano novo não vou poder ir à praia, mas quem sabe no próximo...
[...]
No calor do Rio de Janeiro em janeiro, eu andava de chinelos por uma estrada de pedrinhas.
Eu tinha passado a noite anterior dormindo no pilotis de um prédio, com pessoas fumando e tocando violão. Eu não fumava nem tocava violão.
Minhas duas amigas que tinham ido pra praia comigo, pareciam incrédulas. Eu conseguia ver o medo nos olhos delas. Mas eu não conseguia sentir medo. Eu sentia meu sangue correndo quente pelas minhas veias. Sentia a brisa do mar fazendo carinhos na minha pele.
Na mesma noite que dormimos no pilotis, eu fui abandonada na praia. Eu tinha duas malas de mão, alguns centavos e minha carteira de identidade. Uns 17 anos. Pouca ou nenhuma noção de como voltar para casa. Parecia uma grande piada.
Uma das minhas amigas pediu para que nossa carona - que conhecemos no mesmo dia - a deixasse na rodoviária. Ela entrou no ônibus e partiu. Nunca mais nos falamos.
Então ficamos só nós duas. "Meu pai mora na cidade ao lado". E fomos para lá. Tinham anos que eles não se viam. Nós dormimos numa casa que poderia ter caído sobre nós a qualquer momento. Em colchões comidos pelas traças. Ninguém sentiu minha falta em casa.
Na estrada de pedrinhas, eu liguei para o meu pai. Contei a ele o que havia acontecido. Ele me disse que ficaria tudo bem.
Mas minha amiga precisava de voltar para casa. E eu não tinha nem casa para voltar. "Você pode ficar lá em casa". Eu sabia que podia. Mas também não sabia o que fazer.
Uma vez me disseram que eu tinha alguns parentes que moravam no Rio. Liguei para uma tia-avó - com quem eu nunca tinha conversado - e apareci em Marechal Hermes, no meio do verão, com uma mala de mão.
Lembro que na época eu pintava os cabelos de vermelho e tomava bastante sol.
A casa dessa tia parecia uma casa equipada para pessoas cegas. Mas só ela morava lá. Tinha um quarto cuja porta sempre ficava fechada. Eu nunca quis saber o que tinha lá dentro.
Os netos dessa tia me levavam para a praia e tentavam me distrair. Ninguém havia notado minha ausência.
O sangue ainda corria quente pelas minhas veias e eu sentia todo meu corpo pulsar. No calor do verão, meu corpo, incandescente, brilhava pelas ruas. E eu sentia um cheiro de fumaça de cigarro, mesmo que ninguém na casa da tia Isaura fumasse.
Um dia recebi um telefonema. Na mesma estrada de pedrinhas. E tive que voltar. Mas falei com a tia que não era definitivo, que eu só ia buscar umas coisas. Anos se passaram. Eu nunca mais voltei ao Rio. Mas, certamente, nunca mais fui a mesma.
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