do outro lado da rua.

um dia atravessei a rua e resolvi ficar. 

como quem testa os limites do movimento, eu me alojei do lado de uma lixeira da prefeitura, em frente à um posto dos correios. na mesma rua, havia uma padaria - escolha estratégica para que o cheiro dos pães sendo assados me acordasse pontualmente às 5h, antes da rua ser invadida por carros, ônibus e toda sorte de gente indo trabalhar; havia, também, uma lavanderia daquelas que você põe créditos e lava a sua roupa. na lavanderia, tinha uma televisão que ficava sempre ligada passando videoclipes. 

no começo, eu me sentava no chão mesmo e me escorava na lixeira da prefeitura. aos poucos, as pessoas foram deixando para mim cadeiras de praia e cobertores. meu lado da calçada era sempre impecavelmente limpo e, quando chovia, eu ficava sob a marquise da padaria conversando com a moça do caixa. 

um dia te vi, do outro lado da rua. e tive ódio, porque você parecia copiar todas as minhas ideias. só que do seu lado, não tinha padaria, mas um restaurante self-service e a agência dos correios. eu invejava você por poder bicar as pessoas e suas encomendas e por sempre ter uma marmita te esperando no restaurante. gostava de pensar que você me invejava pelo café quentinho e pelas roupas sempre lavadas. 

eu ficava ali, te vendo, entre os carros. os olhos fixados em você. vez ou outra estacionava o furgão dos correios e tampava minha visão de você, e então eu tinha que te imaginar sentado na sua cadeira de praia. assim como eu. 

em dias de calor extremo, vez ou outra um vizinho de um dos prédios descia para me oferecer água; nos dis de chuva, a marquise da padaria me cobria, mas não me distanciava de você. do meu lado da rua, eu tinha a visão perfeita dos seus olhos, boca, pele. da sua postura elegante e das pernas grandes que pousavam desconfortáveis na cadeira de praia. 

eu ia juntando os pedacinhos que eu tinha de você e colando com minha imaginação e, ao passar dos dias, vi você atônito com o nascimento do seu primeiro cabelo branco - que você descobriu ao se mirar no espelho de uma moto estacionada na frente do seu lado da calçada. 

a esta altura, eu já havia pedido à menina que trabalha na banca de jornais uns quinze metros à frente do meu lado da calçada para me arrumar um batom vermelho; ela também tinha sido gentil o suficiente para me emprestar uma blusa nova, verde, que ela dizia acentuar meus olhos. essa combinação de semáforo não me caía bem, mas deixei que ela me arrumasse. eu queria muito ser vista por você. 

os dias foram passando e esse romance foi crescendo. apesar de apenas uma atravessada de distância, paracíamos longe. eu não queria te gritar do outro lado para minha voz não parecer esganiçada. eu via você tentando estabelecer algum contato, mas sempre me questionava: "porque você não atravessa?"

numa manhã do que parecia ser verão, pelo tempo quente, olhei pro outro lado e você não estava. fiquei inquieta. pensei que pudesse ter ido visitar um parente, mas em anos isso não acontecia. de longe, eu sabia de toda a sua rotina. perguntei na padaria sobre você, assim como na lavanderia - mas como eles ficam do meu lado, não sabiam muito do seu paradeiro. 

foi caindo a noite e na parada de ônibus duas quadras à frente, você desceu. veio caminhando, timidamente, na minha direção. te perguntei porque você preferiu pegar o ônibus, dar a volta na cidade e descer do meu lado. você me disse que tem viagens que precisam ser alongadas para serem sentidas. 

se encontrar sem se atravessar. 


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